BONDADE ACTIVA
Vou permitir-me falar sobre a " bondade" , tema que me é muito caro ! Desde cedo que este conceito me inquieta,e me tem suscitado reflexões de vária ordem. Vi recentemente um filme com um dos meus actores preferidos: " Vigo Mortensen ", cujo tema central era precisamente " a bondade". Depois de ter visto o filme as minhas reflexões não se aquietaram, pelo contrário, tomaram novas dimensões. Fala o filme de dois amigos, que compartiam tudo : as confidências, as alegrias, as tristezas, os sobressaltos, que estavam sempre um com o outro , nas horas felizes e nas amargas. Acontece que os tempos eram " negros", pois estes dois amigos encontraram-se a viver na Alemanha nazi, sendo que um deles era um famoso psicanalista judeu, e o outro , um professor alemão de Literatura na Universidade local , também famoso por uma obra publicada que o dera a conhecer . Ambos comungavam dos mesmos ideais de liberdade, ambos repudiavam o Partido nacional - socialista e a ideologia por ele veículada. Ambos detestavam Hitler dizendo que não poderia ir longe, pois não passava de uma " anedota" , de um " incidente" político sem qualquer importância , de uma " piada", ( joke ). Porém muito depressa, estes amigos começaram a aperceber-se de que a sociedade estava a mudar do antigo pacifismo, para um estranho "beligerismo" perpertado pelas hostes do poder. Com efeito, os membros do partido gozavam de privilégios que estavam vedados a quem não pertencesse ao partido, e na Universidade começaram a circular rumores de que alguém que não lhe pertencesse, nunca poderia aspirar a uma promoção, pelo contrário , sujeitava-se a ser riscado da lista das pessoas que podiam exercer a sua profissão livre e honradamente .
Ambos tinham discutido acerca da mútua necessidade de não sucumbirem a esta horrível ideologia, pois os seus ideais eram puros, aspiravam a um mundo de igualdade, de justiça, um mundo onde houvesse lugar para todos os homens.
De repente procedia-se a queimas de pilhas e pilhas de livros nas ruas por bandos de homens violentos, inebriados com a sensação de poder e de impunidade que pairava por todo o lado. Partiam-se vidros de lojas, incendiavam-se sinagogas, escrevia-se em prédios , lojas e casas, a palavra " Judeu ", em grandes letras, com cores bem visíveis e imprecações, ditos violentos, incitações ao ódio contra todos os que pertenciam a esta raça. Por todo o lado, em todas as cidades alemãs, esta ignomínia contra os judeus, era visível ! Estavam proíbidos de andar pelos passeios das ruas, de frequentar lugares públicos, tal como cafés, restaurantes, piscinas, jardins; proíbidos de se servirem dos transportes públicos, proíbidos de saírem das cidades, de viajar, de dirigirem a palavra a cidadãos alemãos, proíbidos de se reunirem em assembleias, proíbidos de entrar nas lojas, proíbidos de comprar, e vender nas tradicionais lojas das cidades. Pilhavam-se as suas lojas , queimavam-se os seus bens,troçava-se dos infelizes, novos, velhos, homens e mulheres, sem excepção !
Passaram todos a ostentar uma estrela amarela cozida na roupa, que tinha de ter determinadas medidas para que fosse bem visível. Todos estavam coagidos a obedecer, sob pena de pesadas penas ! As pessoas perguntavam-se onde tudo aquilo iria parar, que mais desgraças lhes estariam reservadas...
Infelizmente, como é do conhecimento geral, muitas coisas inomináveis, lhes estavam destinadas !
Um dia, os dois amigos encontraram-se e tentaram falar como antigamente, como se não tivessem penas a pesar-lhe nos corações! O amigo judio disse ao alemão que já não tinha clientes, que lhe tinham fechado o escritório, por seu lado, o amigo alemão confessou que estava contente, porque em vez de ter sido despedido por ensinar autores proíbidos pelo regime, tinha sido promovido. O amigo psicanalista interrogou-se em alta voz, " mas afinal, não eram apenas os filiados no partido que podiam ser promovidos" ? Que ele soubesse , o amigo não era partidário do partido do poder, ou agora era ? O professor só pôde responder com um longo silêncio , depois disse ao amigo, que ele não podia compreender o que se estava a passar , porque tudo era novo! O judeu não encontrava palavras, mas mesmo assim disse-lhe o que os alemães estavam a fazer aos judeus, que lhes estavam a tirar tudo, que estavam a conduzi-los para a mais terrível das misérias, que se desconheciam os horrores que teriam em mente , mas que toda a violência quotidiana manifestada sob as mais diversas formas, não podia ser um bom augúrio ! Disse-lhe que estavam proíbidos de sair do país , que tinham às costas uma sentença de morte. O amigo pedia-lhe calma e sensatez nas suas análises acaloradas, dizia-lhe que com o tempo tudo iria retomar a tão ansiada ordem, que estas altercações passageiras, eram sómente isso, passageiras !
Uma noite , o judeu sabendo que o amigo era um homem bondoso, pediu-lhe que fosse jantar com ele a casa . Tinha um pedido a fazer-lhe ! Precisava urgentemente de um bilhete para Paris, tinha de sair dali, pois sabia-se que os judeus estavam a ser transportados aos milhares em comboios de carga, para campos situados na Polónia e na própria Alemanha. Eram campos de extermínio, deles ninguém regressava com vida para contar como " tinha sido". Também se sabia que não eram transportados alimentos para os mesmos campos,os seres humanos, esses íam, mas os géneros, não ! Contavam-se coisas horríveis dos campos de morte, da brutalidade dos soldados e dos cães, de cabeças rapadas, das fardas frias, às riscas com estrelas amarelas, do trabalho forçado , dos maus tratos, da ausência de comida, das violações, das doenças, das sovas, das experiências a sangue frio, da tortura, dos chuveiros a gaz, dos fornos crematórios , da exaustão, do frio, da selecção, da impiedade .
O professor respondia que não podia fazer nada e que o amigo estava a exagerar, que não devia dar tanta atenção aos boatos ! O judeu rogou, deu-lhe imenso dinheiro, disse-lhe que mesmo que conseguisse partir só estava autorizado a levar consigo " dez dólares", uma vida inteira de trabalho, para levar consigo apenas uns míseros dez dólares, como se se tratasse de um vagabundo, mas tinha de partir, era urgente escapar ao ódio daqueles homens horríveis , fosse como fosse !
Passado algum tempo, o alemão lá acabou por se dirigir a uma estação para adquirir o bilhete, mas puseram-lhe grandes entraves, já era preciso uma autorização especial para se sair do País. Disse então que era membro do partido nazi, que se não lhe vendessem a passagem , tomaria providências contra quem lhe recusava o bilhete, pois tinha " relações" , conhecia " gente importante". Venderam-lhe o bilhete , que guardou em casa. Quando se resolveu a ir a casa do amigo, deu-se conta que naquele bairro tudo estava partido, escavacado, havia coisas queimadas, coisas partidas na rua e por todo o lado, correu para o prédio do amigo, a mesma desolação, tudo partido, as portas e paredes com escritos, a palavra " judeu " por todo o lado, e também obscenidades, ódios, rancores. Aflito, aproximou-se da porta da casa do amigo, sentindo que era tarde ! Deixou um recado por dentro do vidro partido da porta, a avisar que passasse no dia seguinte por sua casa. Desceu as escadas ao som de grande alarido. Na rua, soldados nazis empurravam com baionetas, os moradores do bairro para camiões, que os iriam conduzir à estação, aos comboios. O alemão, olhava por todo o lado, na ânsia de ver o amigo, olhava e parecia-lhe que era o amigo que ali estava, mas não era! Aproximou-se dos camiões, chamou pelo seu nome, mas ninguém tinha aquele nome. Desolado, correu pelas ruas, por todo o lado as pessoas eram empurradas à frente de cães e de baionetas, a única coisa que se ouvia, eram choros , gritos, gemidos...
O amigo judeu, nunca mais apareceu . O amigo alemão veio a saber que ele tinha sido transportado para a Silésia por altura em que ele se tinha decidido a guardar o bilhete em sua casa. Tinha ido tarde demais ! O amigo tinha confiado nele, mas ele, o " bom " amigo tinha ido tarde demais ! Talvez até tivesse sido bom, mas não foi previdente, não agiu com urgência, quando se decidiu a actuar já não era tempo.
Pois é ! É importante ser-se bom, mas, oportunamente, a tempo, não extemporâneamente! De que serve praticar actos de bondade, desperdiçados no tempo ?
Ser-se bom, é ter- se a noção da urgência , da necessidade , é compreender a urgência do " agora" e não do " mais logo" , do " amanhã" ! Amanhã pode ser tarde, muito tarde, como bem ilustrou esta história.
Sejamos bons de tal maneira, que não tenhamos de lutar com problemas de consciência.
Quanto sofrimento este professor teria poupado a ele próprio, se quando o amigo lhe pediu ajuda, ele tivesse compreendido a urgência daquele pedido, um pedido de vida ou de morte.
Ser- se " bom " a tempo , é muitas vezes evitar que alguém morra desnecessáriamente .
Helena Sousa
Ambos tinham discutido acerca da mútua necessidade de não sucumbirem a esta horrível ideologia, pois os seus ideais eram puros, aspiravam a um mundo de igualdade, de justiça, um mundo onde houvesse lugar para todos os homens.
De repente procedia-se a queimas de pilhas e pilhas de livros nas ruas por bandos de homens violentos, inebriados com a sensação de poder e de impunidade que pairava por todo o lado. Partiam-se vidros de lojas, incendiavam-se sinagogas, escrevia-se em prédios , lojas e casas, a palavra " Judeu ", em grandes letras, com cores bem visíveis e imprecações, ditos violentos, incitações ao ódio contra todos os que pertenciam a esta raça. Por todo o lado, em todas as cidades alemãs, esta ignomínia contra os judeus, era visível ! Estavam proíbidos de andar pelos passeios das ruas, de frequentar lugares públicos, tal como cafés, restaurantes, piscinas, jardins; proíbidos de se servirem dos transportes públicos, proíbidos de saírem das cidades, de viajar, de dirigirem a palavra a cidadãos alemãos, proíbidos de se reunirem em assembleias, proíbidos de entrar nas lojas, proíbidos de comprar, e vender nas tradicionais lojas das cidades. Pilhavam-se as suas lojas , queimavam-se os seus bens,troçava-se dos infelizes, novos, velhos, homens e mulheres, sem excepção !
Passaram todos a ostentar uma estrela amarela cozida na roupa, que tinha de ter determinadas medidas para que fosse bem visível. Todos estavam coagidos a obedecer, sob pena de pesadas penas ! As pessoas perguntavam-se onde tudo aquilo iria parar, que mais desgraças lhes estariam reservadas...
Infelizmente, como é do conhecimento geral, muitas coisas inomináveis, lhes estavam destinadas !
Um dia, os dois amigos encontraram-se e tentaram falar como antigamente, como se não tivessem penas a pesar-lhe nos corações! O amigo judio disse ao alemão que já não tinha clientes, que lhe tinham fechado o escritório, por seu lado, o amigo alemão confessou que estava contente, porque em vez de ter sido despedido por ensinar autores proíbidos pelo regime, tinha sido promovido. O amigo psicanalista interrogou-se em alta voz, " mas afinal, não eram apenas os filiados no partido que podiam ser promovidos" ? Que ele soubesse , o amigo não era partidário do partido do poder, ou agora era ? O professor só pôde responder com um longo silêncio , depois disse ao amigo, que ele não podia compreender o que se estava a passar , porque tudo era novo! O judeu não encontrava palavras, mas mesmo assim disse-lhe o que os alemães estavam a fazer aos judeus, que lhes estavam a tirar tudo, que estavam a conduzi-los para a mais terrível das misérias, que se desconheciam os horrores que teriam em mente , mas que toda a violência quotidiana manifestada sob as mais diversas formas, não podia ser um bom augúrio ! Disse-lhe que estavam proíbidos de sair do país , que tinham às costas uma sentença de morte. O amigo pedia-lhe calma e sensatez nas suas análises acaloradas, dizia-lhe que com o tempo tudo iria retomar a tão ansiada ordem, que estas altercações passageiras, eram sómente isso, passageiras !
Uma noite , o judeu sabendo que o amigo era um homem bondoso, pediu-lhe que fosse jantar com ele a casa . Tinha um pedido a fazer-lhe ! Precisava urgentemente de um bilhete para Paris, tinha de sair dali, pois sabia-se que os judeus estavam a ser transportados aos milhares em comboios de carga, para campos situados na Polónia e na própria Alemanha. Eram campos de extermínio, deles ninguém regressava com vida para contar como " tinha sido". Também se sabia que não eram transportados alimentos para os mesmos campos,os seres humanos, esses íam, mas os géneros, não ! Contavam-se coisas horríveis dos campos de morte, da brutalidade dos soldados e dos cães, de cabeças rapadas, das fardas frias, às riscas com estrelas amarelas, do trabalho forçado , dos maus tratos, da ausência de comida, das violações, das doenças, das sovas, das experiências a sangue frio, da tortura, dos chuveiros a gaz, dos fornos crematórios , da exaustão, do frio, da selecção, da impiedade .
O professor respondia que não podia fazer nada e que o amigo estava a exagerar, que não devia dar tanta atenção aos boatos ! O judeu rogou, deu-lhe imenso dinheiro, disse-lhe que mesmo que conseguisse partir só estava autorizado a levar consigo " dez dólares", uma vida inteira de trabalho, para levar consigo apenas uns míseros dez dólares, como se se tratasse de um vagabundo, mas tinha de partir, era urgente escapar ao ódio daqueles homens horríveis , fosse como fosse !
Passado algum tempo, o alemão lá acabou por se dirigir a uma estação para adquirir o bilhete, mas puseram-lhe grandes entraves, já era preciso uma autorização especial para se sair do País. Disse então que era membro do partido nazi, que se não lhe vendessem a passagem , tomaria providências contra quem lhe recusava o bilhete, pois tinha " relações" , conhecia " gente importante". Venderam-lhe o bilhete , que guardou em casa. Quando se resolveu a ir a casa do amigo, deu-se conta que naquele bairro tudo estava partido, escavacado, havia coisas queimadas, coisas partidas na rua e por todo o lado, correu para o prédio do amigo, a mesma desolação, tudo partido, as portas e paredes com escritos, a palavra " judeu " por todo o lado, e também obscenidades, ódios, rancores. Aflito, aproximou-se da porta da casa do amigo, sentindo que era tarde ! Deixou um recado por dentro do vidro partido da porta, a avisar que passasse no dia seguinte por sua casa. Desceu as escadas ao som de grande alarido. Na rua, soldados nazis empurravam com baionetas, os moradores do bairro para camiões, que os iriam conduzir à estação, aos comboios. O alemão, olhava por todo o lado, na ânsia de ver o amigo, olhava e parecia-lhe que era o amigo que ali estava, mas não era! Aproximou-se dos camiões, chamou pelo seu nome, mas ninguém tinha aquele nome. Desolado, correu pelas ruas, por todo o lado as pessoas eram empurradas à frente de cães e de baionetas, a única coisa que se ouvia, eram choros , gritos, gemidos...
O amigo judeu, nunca mais apareceu . O amigo alemão veio a saber que ele tinha sido transportado para a Silésia por altura em que ele se tinha decidido a guardar o bilhete em sua casa. Tinha ido tarde demais ! O amigo tinha confiado nele, mas ele, o " bom " amigo tinha ido tarde demais ! Talvez até tivesse sido bom, mas não foi previdente, não agiu com urgência, quando se decidiu a actuar já não era tempo.
Pois é ! É importante ser-se bom, mas, oportunamente, a tempo, não extemporâneamente! De que serve praticar actos de bondade, desperdiçados no tempo ?
Ser-se bom, é ter- se a noção da urgência , da necessidade , é compreender a urgência do " agora" e não do " mais logo" , do " amanhã" ! Amanhã pode ser tarde, muito tarde, como bem ilustrou esta história.
Sejamos bons de tal maneira, que não tenhamos de lutar com problemas de consciência.
Quanto sofrimento este professor teria poupado a ele próprio, se quando o amigo lhe pediu ajuda, ele tivesse compreendido a urgência daquele pedido, um pedido de vida ou de morte.
Ser- se " bom " a tempo , é muitas vezes evitar que alguém morra desnecessáriamente .
Helena Sousa